sábado, 15 de janeiro de 2011

UM DIA PERFEITO



























E quando o dia chegar e seu corpo desaparecer, nenhum mal mais o espera!
TAO TE KING – Lao Tse.


Caro diário,


Hoje acordei prevendo ter um dia daqueles. Trabalhei até 01:30 da madrugada no projeto do supermercado. O senhor Ikeda o queria para hoje, sem falta, e perdi preciosas horas de sono para terminá-lo. Não ouvi o despertador tocando e Yoko teve de me balançar para que eu acordasse. Aprontei-me correndo e só tomei uma xícara de chá para aquecer as entranhas. Perderia tempo se pegasse o ônibus, por isso tive de gastar mais em um táxi. A manhã estava clara e ensolarada, alegre para quem quisesse passear, péssima para quem se atrasava para o trabalho. Para pessoas como eu, um Sol amarelo e radiante no céu apenas quer dizer “você está atrasado, vagabundo!”
Acenei para o primeiro táxi que passou. Ele parou... mas não para mim. Uma senhora idosa o pegou. Não sou um cafajeste, mas estava pouco propenso a cavalheirismos hoje de manhã. Por fim um segundo táxi parou. Entrei, informei o endereço e exigi ao motorista:
_Rápido, por favor!...
O motorista seguiu o mais rápido que a lei permite. Queria eu estar ao volante, ou estar em um filme americano, pois assim o carro estaria voando. Aliás, foi nesse momento que lembrei que já faz muito tempo que não assisto a um filme americano. Exatamente quatro anos, desde que foi declarada a guerra.
Olhei o relógio, eram 08:00 horas, eu já estava no atraso. Hoje seria dia de eu ouvir... O senhor Ikeda jamais perdoa. Penso mesmo que seu lugar não é em uma empresa de consultoria, mas no comando de uma tropa no Pacífico. Pena que ele não está numa... Um morteiro americano prestaria um grande serviço à humanidade em atingi-lo. Ao invés disso, quem é atingido por um torpedo é Yugoro, nosso ex-office boy. O tiro foi tão bem dado que o navio partiu-se ao meio. Sua família ainda teve sorte de ter seu corpo de volta. Se tudo der certo, Kojiro vai voltar para casa mês que vem, papai ficou muito abalado desde sua ida para a Manchúria.
Aliás, hoje também andei sofrendo abalos... Pouco depois das tomar o táxi, tive uma ligeira perturbação. Uma espécie de flash explodiu em minha vista e ouvi um estalo que fez meus ouvidos zumbirem. Fiquei tonto por um tempo, uns quinze segundos, talvez. Penso que fiquei mais perplexo do que tonto. Quando abri os olhos perguntei ao motorista se também havia visto um relâmpago. Ele riu e disse não ter ouvido falar em rumores de chuva pelo rádio. Perguntou em seguida se eu havia comido antes de sair. Ao responder-lhe que tomei apenas uma xícara de chá, ele arrematou que era isso, eu estava fraco.
Concordei inteiramente com ele, dormi mal e quase não me alimentei, devo ter tido hipoglicemia. De qualquer forma, saltei do táxi sentido-me melhor. Aliás, não sentido nada de errado. Entrei apressado no escritório e para minha surpresa... estava havendo uma festa!... O senhor Tanaka estava de pé sobre uma mesa, como em um palanque improvisado, fazendo um efusivo discurso. Os colegas o aplaudiam e reverenciavam calorosamente. Recitava poemas!... Eu sequer sabia que ele fazia poemas. Perguntei à Keiko sobre o porquê daquilo e ela simplesmente me respondeu que era dia de alegria, para eu me alegrar também e não fazer perguntas.
Logo em seguida, cantando em coro, todos seguiram para a sala de reuniões, onde a mesa exibia um copioso banquete. Meus olhos ficaram estarrecidos com tanta comida. Saburo pôs um disco na vitrola e todos começaram a cantar a música e balançar os braços. Foi neste instante que fiz a ele a pergunta fatal:
_Saburo... será que o senhor Ikeda vai gostar dessa bagunça? Aliás, onde está o senhor Ikeda?...
_Ora, Hiroshi, esqueça o senhor Ikeda, ele deve ter ficado preso no trânsito... ou no banheiro!... rra-ra-ra-ra... _respondeu-me sarcasticamente.
Com esta resposta, decidi simplesmente me juntar aos loucos, pois se fosse despedido, pelo menos seria num dia feliz. Tirei o paletó e fui comer, rir e brincar. Senhora Suzuki cantou esplendidamente para espanto de todos. E... de repente, em uma entrada triunfal, ao som de tambores e flautas, Michiko apareceu de kimono, com o cabelo impecavelmente arranjado e o leque nas mãos. Estava linda!... Meu Deus, como estava linda!... Ela começou a dançar enquanto senhora Suzuki cantava. Foi um momento mágico. Todos ficaram calados, deslumbrados com aquela beleza. É uma pena que ela seja casada... e eu também...
Quando ela terminou todos aplaudiram efusivamente. Kyoko, Haruko e as outras mulheres estavam com lágrimas escorrendo dos olhos. O senhor Matsushita enxugava as suas com o lenço. Em seguida, já começando a palhaçada, Saburo tirou um disco de dentro de um saco verde e aveludado. Escondeu-o atrás de si, olhou com um sorriso rasgado para todos.
_Aaaaahhh... adivinhem o que tenho aqui?...
Todos pediram para ele mostrar. Saburo então virou de costas, tendo cuidado de não mostrar a capa do disco. Tirou o vinil da capa, o pôs no aparelho e... era jazz!!! Louis Armstrong!
_Uuuuuuhhhh... _fizeram todos aplaudindo e assobiando.
Dançamos o resto da manhã. Tive o imenso prazer de convidar Michiko para dançar, mesmo ela estando de kimono. Por sinal, o fato de o kimono ser apertado às pernas até deu-lhe um toque de Ginger Rogers. A festa terminou pouco depois do meio dia. Sai relaxado, carregando o paletó às costas. A rua também parecia alegre, muitas pessoas sorriam e se cumprimentavam cordialmente. Onde estava o sisudo corre-corre? Acenei para o primeiro táxi que passou e ele parou. O motorista abriu a porta sorrindo gentilmente. Conversamos durante a viagem e ele me falou que esta seria sua última corrida, pois ia sair de férias.
Eu olhava para as lojas e elas mais pareciam jardins, tantas eram as flores ornamentando suas entradas. Por fim cheguei em casa. Quis pagar o taxista, mas ele me surpreendeu:
_Não precisa, esta corrida foi cortesia.
Abri o portão de casa como se tivesse acabado de chegar de longas férias. Yoko e as crianças me receberam fazendo festa. Rodearam-me pulando e agarrando-me como se tivessem preparado uma surpresa. Novamente me espantei.
_Mas o que está acontecendo? Hoje é o dia dos loucos?... _perguntei bem humorado.
Entrei em casa abraçado à Yoko e com Ken e Tamiko me puxando pelas calças. A mesa estava posta de maneira simples, mas alegre. Sentamos, comemos e nos alegramos. Ao fim da refeição, Ken e Tamiko foram brincar e eu fui com Yoko tomar um banho. Ficamos juntos a tarde toda como se fosse um sábado. Ao cair da noite, ela foi contar estórias às crianças, que logo adormeceram. Depois, enquanto jantávamos tranqüila e confortavelmente, Akira e Haruko chegaram de surpresa. Os recebemos com muita satisfação e eles passaram a noite conosco, lembrando saudosamente o dia de nossos casamentos.
Não quis ser inoportuno, mas perguntei a Akira se ele já pagara sua dívida com o banco. Ele sorriu e respondeu:
_Ora, Hiroshi!... Nem lhe conto! O banco perdoou minha dívida. Ligaram para mim por volta das 08:00 horas e me disseram que eu havia sido agraciado com um prêmio. Meu prêmio é justamente não ter de pagar mais nada e ainda ter todo meu crédito de volta!... rra-ra-ra-ra...
Ao soar das 22:00 horas eles se foram. Quando nos recolhemos disse a Yoko o quanto estava estranhando tudo estar tão bem, tão perfeito.
_Até os Watanabe não fizeram barulho hoje. _comentei. _Aliás, eles viajaram? Sua casa está fechada, não há ninguém lá...
Yoko então segurou meu rosto com suas duas mãos e me disse ternamente:
_Por que se perturba Hiroshi?... Está tudo bem, querido. Tudo em ordem. Foi só um dia feliz, só isso. Vamos dormir, amanhã será um novo dia, você não tem de se preocupar. _e tendo falado isso, olhou-me cheia de amor e beijou-me.
Estava deitado com Yoko ainda há pouco. Deixei-a dormindo profundamente na cama. Estou agora aqui, prestando contas a você como faço todas as noites. Confesso que ainda estou perplexo. Não apenas com tanta felicidade, mas com as ausências do dia de hoje. O senhor Ikeda não é de faltar e mesmo se faltasse mandaria algum recado. Os Watanabe não disseram a ninguém que iam viajar. Por sinal, ninguém soube me informar para onde foram ou porque partiram. Também acabo de lembrar que Jiro não ligou hoje. Ele sempre me informa o estado de saúde de papai.
É... meu caro diário, talvez eu seja, realmente, um sujeito muito preocupado que não sabe ser feliz, porque nunca se sentiu inteiramente assim. Penso que devo aprender a partir de hoje. É engraçado, nunca pensei que se precisasse aprender a ser feliz. De qualquer forma, o projeto que o senhor Ikeda queria está pronto e não terei de me preocupar com a gritaria dos Watanabe. Estou me sentindo muito bem, apesar do mal estar de hoje de manhã e não senti um pingo culpa pelo que fiz ou pensei. Mesmo quando me maravilhei com Michiko. Aliás, diário, sinceramente, felizes eram os xoguns que podiam ter várias mulheres. Fique com esta! Boa noite.


Nakamura Hiroshi, Hiroshima, 06 de agosto de 1945, 23:31 da noite.



Marcelo Farias. Ilustração: relógio marcando a hora exata em que a primeira bomba atômica (Little Boy) explodiu sobre Hiroshima.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A ORIGEM DAS CARTAS DE BARALHO


























Alea iacta est - A sorte está lançada!

Júlio Cesar


Muito se diz sobre a origem das cartas de baralho. Uns dizem que é cigana, outros defendem que é indú, a versão mais aceita pelos estudiosos é de que é egípcia, mas vou mostrar aqui uma versão pouco conhecida. Por volta de 1200, existíam quatro pequenos reinos na Europa central, que tinham em seus brasões e bandeiras, respectivamente, um dos quatro naipes das cartas de baralho: o reino de Paus, o reino de Copas, o reino de Espadas e o reino de Ouros. Todos três igualmente fortes e hostis entre si, mas com características distintivas bem marcantes.
O reino de Paus era o menos rico dentre eles, porém o mais virtuoso. Seu rei era um homem devoto e corajoso, que desposava uma rainha virtuosa e fiél ao marido. Seu valete era cavaleiro sagaz e leal a seu rei, e sempre estava acompanhado do ás, um jovem destemido e bom de briga. O reino era essencialmente agrícola, mas sua economia era estável _sobressaíndo-se a produção vinícola _e os súditos amavam seu rei. O Natal e a Páscoa era lindamente festejados no reino de Paus.
O reino de Copas era mais rico e opulento. Seu rei era um glutão orgulhoso e alcoviteiro, que possuía um verdadeiro harém com muitas comcubinas. Desposava uma rainha voluptuosa (ex-prostituta de luxo) e infiél. Seu valete era um galanteador de quinta categoria, que mantinha um caso velado com a rainha. Seu companheiro de farras, o ás, era beberrão, jogador e mulherengo cuja única virtude era saber lutar. Era ele quem valia o valete, quando este tinha de se confrontar com os muitos maridos traídos, que frenquentemente o flagravam em delito com suas esposas. De resto, a economia do reino era em parte agrícola, em parte mercantil, destacando-se a produção de frutas, a salsicharia e... a prostituição, é claro!...
O reino de Espadas era uma tirania. Seu rei era homem soturno e cruél, desconfiado e sanguinário, que desposava uma rainha má e ardilosa. Esta tinha como fiél criado e amante, o valete, que era um assassino e torturador profissional. O ás era um bandido sórdido e desclassificado, que fugira das masmorras do reino de Copas. A economia do reino era instável, devido à exploração ostensiva dos súditos, com pesados impostos insidindo sobre camponeses e mercadores. Fora isso, as obras do reino eram realizadas pelo trabalho escravo dos muitos presos políticos. Estes, quando conseguíam fugir, pedíam azilo ao reino de Paus, que sempre lhes concedia.
O reino de Ouros era o mais rico e poderoso entre todos. Seu rei era homem elegante e ambicioso, perito em negociações comerciais. A rainha era mulher refinadíssima, de alto trato social, que sabia dissimular, como ninguém, o caso que mantinha com o valete _que era um jovem galante e conhecido por seu talento alcoviteiro, assim como pela arte da esgrima. O ás era um mercenário conhecido, veterano de muitas batalhas, bem treinado na arte da espada, mas cioso dos butins de guerra. A economia do reino era essencialmente mercantil e seu povo era rico e orgulhoso.
As terras férteis do reino de Paus eram cobiçadas pelos outros três reinos. O reino de Copas invejava e rivalizava com o reino de Ouros e o reino de Espadas ambicionava tomar todos os outros três, assim como fomentava saques e ataques contra os demais. Sendo assim, as guerras eram frequentes. Quando os quatro reinos combatíam em campo aberto, faziam batalha. Quando armavam emboscadas, fazíam buraco. Quando se defendíam de assaltos de surpresa e cercos, fazíam pif-paf. E quando só os acordos e indenizações resolvíam a guerra, fazíam poker. Todos os quatro reinos se equiparavam em batalha. O reino de Espadas era expert no buraco. O reino de Paus era imbatível no pif-paf. Os reinos de Copas e Ouros, sempre preferíam resolver tudo no poker, sendo que o reino de Ouros era, indiscutivelmente, o melhor nesta estratégia.
Porém, todos os quatro reinos, em certo momento, possuíram algo em comum, sem que o soubessem: o mesmo bobo da corte. Este era um espertalhão de origem desconhecida, pois há quem defenda que era francês, outros, italiano. O fato é que era o pivot de muitas guerras _tanto como causador, quanto como apaziguador dos conflitos _servido sempre de intermediário e agente duplo entre os quatro reinos. Um belo dia, foi descoberto pelo astuto rei de Espadas, que o condenou à uma morte lenta e cruél: a roda! Levado ao calabouço, porém, subornou os desleais guardas do rei chamando prostitutas amigas suas. Segundo testemunhas, fugiu da prisão pelos portões da frente, vestido de mulher. Ainda suplicou por azilo ao rei de Paus, mas este não o concedeu.
Dizem que então foi para a França, junto com um grupo de ciganos. Lá, teria confeccionado as cartas de baralho, para poder sobreviver de jogo e adivinhações. Baseou então seus naipes nos próprios símbolos heráldicos distintivos dos quatro reinos. Assim como desenhou os reis, valetes e damas, tomando como modelos as próprias pessoas que conhecera. Por algum motivo, nunca quis desenhar os ases. Também confeccionou as cartas de Tarot, em agradecimento aos ciganos, que o ajudaram a fugir. Teria inventado também todos os jogos de baralho, baseado nas estretégias usadas pelos quatro reinos.
Não se sabe exatamente como morreu. Alguns defendem que morreu pobre, doente e faminto, pedindo esmolas como mendigo, uma vez que de tal forma ficara conhecido como vigarista, que ninguém mais nele acreditava. Outros defendem que fora finalmente delatado aos agentes do rei de Espadas, que o teria assado, aos poucos, em óleo fervente. Seja como for, este esperto e vaidoso bobo ainda nos legou uma última herança, de sua ardilosa vida: o coringa! Que dependendo do jogo, pode valer tudo!... ou pode valer nada!...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

AS CRIANÇAS DO CEMITÉRIO (Children Of The Grave)



























Revolution in their minds
The children start to march
Against the worlda they have to live in
All the hate that's in their hearts (...)


Children Of The Grave - BLACK SABBATH



Em 19 de novembro de 1647, durante a Revolução Inglesa, um pelotão montado de ironsides _os soldados de elite de Oliver Cromwell _chacinou um grupo de quarenta crianças, que atiravam pedras durante sua passagem em uma estrada próxima à vila de Windsor. O povo da vila, revoltado, armou uma emboscada para os soldados, no caminho para Londres. Armada com paus, pedras, facas, foices ou apenas as próprias mãos, unhas e dentes a turba trucidou inacreditavelmente o pelotão, a despeito das muitas baixas entre os aldeões. Ao fim da batalha, os corpos dos soldados foram queimados em uma imensa fogueira. Na manhã seguinte, as crianças receberam um funeral honroso no próprio local onde foram assassinadas, como se fossem guerreiras que merecessem ser enterradas no campo de batalha. A partir deste dia, os aldeões passaram a utilizar o local como novo cemitério, pois tornou-se uma honra ser enterrado ao lado dos "heróis pequeninos". Porém, tal honra aumentou sobremaneira depois que os cabeças redondas tomaram o poder e decapitaram o rei Carlos I, em 1649. Como represália pela morte do pelotão, Cromwell, ordenou à condenação à forca de todos os aldeões que participaram do combate.
Culpados e inocentes, contando um total de duzentos e quarenta aldeões foram enforcados ou mortos a esmo pelos soldados, que chegarram a arrastar os corpos de vinte deles presos a seus cavalos. Líderes da aldeia tiveram suas cabeças cortadas e expostas ao povo. Em longo trecho da estrada que ia de Windsor à Londres, os viajantes ficavam horrorizados com a fila de corpos dependurados pelo pescoço, sendo devorados pelos corvos, cobertos de moscas e exalando o pútrido cheiro da morte.
Mas de cento e quarenta anos se passaram e, em 1791, um viajante ilustre, Sir Callingan, que passava a cavalo pela estrada, pouco antes de alcançar o cemitério, declarou ter visto crianças correndo, rindo e escondendo-se entre as árvores. Era por volta da 01:00 hora da madrugada e Sir Callingan disse ter chegado a gritar para as crianças:
"_Vão para casa! Isso não são horas de crianças brincarem de esconder!"
Mal acabou de falar, foi surpreendido pelo abrupto silêncio e desaparecimento dos pequeninos. Seu espanto, no entanto, ainda não foi muito até este instante. Ao passar pelo cemitério, observou que muitas cruzes tinham datações muito curtas para a vida de um adulto. Concluiu então, instintivamente, que vira as crianças enterradas ali. Homem racional, no dia seguinte, em uma hospedaria próxima à Londres, comentou o incidente com o hospedeiro e os demais presentes. Mal começaram a ouvir a narrativa, seus rostos empalideceram e começaram a benzer-se.
Contaram-lhe então o antigo incidente da revolução e convenceram-no a certificar-se da história nos anais de Londres. Nobre, detentor de privilégios, Sir Callingan recebeu autorizaçãopara investigar os documentos antigos da cidade e não tardou a descobrir uma carta militar, datada do ano do Senhor de 1649, que narrava o incidente com as crianças e apresentava a ordem de Cromwell de retaliação à vila de Windsor. Pasmo, Callingan mandou rezar uma missa às almas das crianças em Westminster e nunca mais passou, nem de carruagem, pela estrada que liga Windsor à Londres, tal como narrou em seu diário.
Este, no entanto, foi apenas o primeiro relato famoso àcerca das "crianças do cemitério". Muitos outros iriam juntar-se a ele no decorrer dos cinquenta anos seguintes. Em 1848, uma enxurrada de relatos sobre as crianças do cemitério de Windsor encheram os jornais de Londres. Entre eles, o de uma senhora de cerca de cinquenta anos, Josephine Hammilton, professora primária que viajava de carro de Reading para Londres. Miss Hammilton afirmou que ao passar pelo cemitério, pouco antes de alcançar Windsor, apavorou-se após ter um repentino e macabro encontro com um menino:
"_Era um menino de cerca de onze anos, de cabelos longos e castanhos. Vestia roupas muito antigas, como as que só vemos em pinturas. Ele sorria maliciosamente para mim e tinha a tez pálida. Seu tom zombeteiro, longe de me irritar, me dava calafrios. Fiquei angustiada e desviei o olhar por um instante. Não mais que o tempo de um suspiro. Quando voltei a olhar o menino havia desaparecido."
Tais incidentes despertariam, dez anos depois, o interesse do jovem psiquiatra Adam Hughs, então com 33 anos, estudioso de fenômenos sobrenaturais, que mantinha freqüente correspondência com o francês Denizard Rivail (mas conhecido por seu nome espiritual, Allan Kardec). Hughs não apenas investigou a estrada, como entrou no próprio cemitério. Colheu inúmeros relatos de moradores de Windsor e chegou mesmo a montar acampamento _sem o conhecimento do prefeito local _com mais quatro auxiliáres no meio do bosque cortado pela estrada, para verificar se as visões não eram brincadeiras armadas pelas crianças vivas do vilarejo.
Passou três dias em vigília sem ver qualquer sinal de crianças, vivas ou desencarnadas. A única coisa digna de nota para Hughs foi a incrível e inexplicável tristeza que se abatia sobre ele e seus companheiros, sempre no período que ia das 15:45 às 16:00 horas e a sensação de estarem sendo observados e acompanhados por "presenças inquietantes". Ao retornar a Londres, investigou os documentos que tratavam do episódio de duzentos anos antes. Espantou-se ao descobrir que a chacina ocorrera exatamente entre 15:45 e 16:00 horas (pelas horas do pôr do sol de outono) do dia 19 de novembro de 1647.
Depois de Hughs, vários pesquisadores, icluíndo o célebre Frederic W. Myers, da Society For A Psicho Research, estudaram o fenômeno das crianças do cemitério de Windsor, sem chegarem a uma resposta definitiva. No século XX, vários pesquisadores realizaram suas próprias investigações. Porém, os únicos a tirarem conclusões mais palpáveis foram o parapsicólogo Richard Wilbourn Jr. e sua esposa Susan. Em setembro de 1977, o casal instalou dez pequenos gravadores, junto com câmeras filmadoras (ambos os aparelhos colados com fita adesiva, junto a um relógio) escondidas em moitas e árvores no bosque, na estrada e no cemitério.
As câmeras não colheram nada que fosse considerado digno de mensão, porém os gravadores captaram bizarras risadas, frases e barulho de crianças brincando, no momento em que as câmeras não detectavam a menor presença próxima aos aparelhos. Captaram ainda assobios estilizados e até uma lúgubre e tristonha canção, cantarolada pela voz melancólica de uma menina. Richard e Susan relataram ainda que, na hora em que foram colhidos os estranhos sons, uma abrupta queda de temperatura se fazia sentir. Junto a ela, uma inquietante sensação de "presença invisível", acompanhada, por vezes, de uma profunda... tristeza.
Fora isso, declararam que tiveram muitos problemas com o súbito desaparecimento de pequenos objetos pessoais, como peças de roupa, relógios, canetas e sapatos que, por vezes, eram encontrados em lugares muito distantes de onde haviam sido guardados. Locais inesperados como a ponta de galhos de árvores, dentro de moitas e, várias vezes, semi-enterrados sob folhas secas. Os desaparecimentos pareciam mesmo típicas brincadeiras de criança. Com tudo isso, o casal não conseguiu fazer-se acreditar pela comunidade científica, que chegou mesmo a acusá-los de forjarem os sons.
Porém, em 1994, o psiquiatra canadense John Keynes, declarou à comunidade científica que, ao analisar as gravações do casal Wilbourn, constatou que as frases pareciam ridiculamente initeligíveis, como se fossem faladas em outra língua que não o inglês. Psiquiatra especializado em crianças com distúrbios mentais, Keynes logo observou que os sons não eram aleatórios ruídos produzidos por crianças com problemas, como a síndrome de Down, ou qualquer outro distúrbio, nem fruto de brincadeiras infantis como falar de trás para frente, ou em código, mas frases bem construídas e fluentes.
As gravações foram então passadas à análise do lingüista galês George Stenfield, especializado em dialetos antigos da Grã-Bretanha. Após três dias de criteriosa audição, Stenfield chegou a inusitada conclusão de que as crianças falavam no antigo dialeto da região de Windsor, dialeto este que não era mais falado e só aparecia em livros especializados. Declarou-se também espantado com tal fato, visto que ele mesmo levara dois anos para aprender, precariamente, a pronunciar as palavras de tal dialeto e que, crianças atuais jamais aceitariam o castigo de aprender uma fala tão gutural.
Stenfield frisou ainda que as abafadas vozes gravadas usavam o que parecia ser expressões populares. em um esforço de tradução, trancreveu algumas das frases. Elas diziam coisas comos:
"Josh 'Cabeça de Esquilo'... (intraduzível)", "(...) são 'cabeças redondas', Kay", "(...) no topo da árvore... (intraduzível)", "com o Diabo na ponta dos pés" (corram???...). E os mais impressionantes: "(...) a mulher 'cabeça redonda'... (intraduzível)", "(...) ela vem com o súdito do rei!". Richard usava cabelos longos à época da pesquisa e Susan cabelos curtos, pouco abaixo do pescoço.
Após a apresentação da análise de Stenfield à comunidade científica, houve quem defendesse uma manipulação feita por computador, logo descartada por especialistas, mas a Ciência simplesmente preferiu calar-se e esquecer o caso. Hoje porém, treze anos após o desfecho do último capítulo do bizarro caso das crianças do cemitério de Windsor, o psicólogo americano Paul Dawson voltou a analisar o caso, usando como argumento uma desafiadora pergunta à comunidade científica:
"_Que mente seria tão obstinada e doentia, a ponto de construir uma mentira tão elaborada?"



Marcelo Farias. Ilustração: cemitério de Charleston.